25 de abr. de 2007

Insanidade cinematográfica


Sabe aquela realidade que dificilmente é abordada, aquela matéria que te choca? Aconteceu comigo. Final de primeiro semestre e uma reportagem da Andréa Dip caiu em minhas mãos. O título era Cidade dos Esquecidos. O texto relatava a realidade das instituições psiquiátricas no País. Foi publicado em março de 2006 na revista Caros Amigos.

A inquietação tomou conta mim e a sintonia aconteceu. Recebi um e-mail da Kinoforum, uma Associação Cultural que trabalha com cinema. Era um convite para a inscrição de argumentos de roteiro para documentário. O encontro da fome com a vontade de comer.

Eu já havia feito um trabalho com o grupo em 2002, um curta de ficção, chamado Morte em Santos. O resultado igualmente seria produzido e exibido no Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo.

Mandei meu argumento assim:

"A idéia, o conceito desse documentário é trabalhar dois movimentos: internação e recuperação. Serão utilizados como eixo principal os depoimentos de dois ou três ex-usuários do sistema manicomial, que atualmente desenvolvem atividades alternativas de convivência, trabalho e arte, pontuados com afirmações de entrevistas de especialistas no assunto: um psiquiatra, com opinião mais ortodoxa, e um psicólogo, com visão mais humana".

Vinte minutos depois, recebi uma ligação. Era o produtor me passando um contato, Francisco de Assis, ex-usuário do sistema, um novo amigo, com quem trabalhei no roteiro, figura fundamental na pesquisa e nos contatos.

Foram três finais de semanas. Durante os jogos da Copa do mundo, nos encontrávamos no Centro Cultural São Paulo, para fazermos tratamento de roteiro. Conheci muitos personagens através do Chico. Muitas histórias e cada uma... Pode ter certeza, daria um filme. Na coordenação do trabalho, um experiente roteirista, Daniel Chaia.

Após entregarmos o roteiro oficialmente à equipe de produção, não posso negar. Foi uma longa espera, dois meses, até a primeira projeção.

Sábado, 26 de agosto, Museu da Imagem e Som (MIS), Avenida Europa, São Paulo. A expectativa era muito grande, 17º Festival Internacional de curtas-metragens de São Paulo, muito glamour, chique mesmo. Reencontrei o Chico, o personagem principal. Ele assinou o roteiro comigo e acabou fazendo uma participação - atuou numa seqüência de ficção que recorta os depoimentos.

Uma experiência indescritível, aquela sessão das 18h00 de sábado. No cinema, as pessoas foram chegando, se acomodando as poltronas. Apreensivo, identifiquei alguns personagens. Foi bom revê-los. Em alguns instantes, a sala estava lotada.

De maneira simples e, ao mesmo tempo, como numa première, fui convidado a apresentar meu trabalho. Falei um pouco sobre o processo e fui direto ao ponto. O Brasil tem hoje 42 mil internos em 240 hospitais psiquiátricos. A violência consiste na má administração de remédios e ainda de eletrochoques. Em 1991, no Juquery, foram encontrados em um cemitério clandestino os restos mortais de mais de 30 mil homens, mulheres, crianças e bebês. E ainda pedaços de corpos, muitos braços e pernas. Chegamos aos anos 90, com quase 100 mil pessoas internadas, e em 2006 com mais de 300 mil mortos dentro dos muros dos manicômios.

Um Grito foi o nome que escolhi para o filme. Foram apenas 10 minutos, mas, quando subiram os créditos e acenderam as luzes, olhei para o lado e vi uma jovem chorando. Lembrei-me da indignação que tomou conta de mim ao ler sobre o assunto, das pessoas que conheci nos espaços de convivência. Agora, mais forte para continuar a projetar meus pensamentos, sigo idealista, tentando mudar a realidade através da comunicação, agora em linguagem global e com legenda em inglês.

O filme é apenas "um grito" entre muitos que ecoaram sem nunca serem atendidos. O documentário será exibido em festivais por todo País e pelo mundo.

Ao virar esta página, concluo algo que levo comigo: o ser humano é um bicho muito estranho. Mas, como diz um grande professor que tive em minhas andanças pelo mundo, "existem várias maneiras de se fazer algo, mas procure sempre agir corretamente".

No texto de Antonin Artaud, Van Gogh: Suicidado pela Sociedade, o autor pergunta: o que é um autêntico louco?

Ele mesmo responde: "é um homem que preferiu ficar louco no sentido socialmente aceito, ao invés de trair uma determinada idéia superior de honra humana".

Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras.

Pois o louco é o ser humano que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de falar certas verdades intoleráveis.

Fazer cinema é isso: uma loucura.

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